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Na busca da vacina contra o câncer.

Texto publicado em 10/01/2019 no blog PARA ONDE O MUNDO VAI.

Imagem de microscopia eletrônica, colorida digitalmente, mostrando linfócitos T (em azul) atacando uma célula tumoral (em amarelo). Modificado de OncologyNurseAdvisory.

O prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2018 foi concedido conjuntamente aos pesquisadores James Allison (EUA) e Tasuku Honjo (Japão), por pesquisas que levaram ao desenvolvimento de uma forma inovadora e promissora de combate ao câncer: a imunoterapia. As pesquisadoras Brasileiras Renata Collazo e Tamara Laskowski participam da equipe do Dr. Allison e tiveram sua contribuição reconhecida através do Prêmio Embaixada do Brasil de Ciência, Tecnologia e Inovação. Em poucas palavras, a imunoterapia se refere ao uso do próprio sistema imunológico do paciente para encontrar e eliminar as células tumorais.

O sistema imunológico é um dos sistemas mais complexos e fascinantes no nosso organismo. Ele é responsável por identificar e eliminar agentes estranhos, como vírus e bactérias (patógenos). Mas a tarefa é um pouco mais complicada. Por exemplo, nossa saúde também depende da rica e diversa comunidade de vírus e bactérias que compõem a nossa microbiota intestinal.

Uma das maiores revoluções da medicina foi justamente o desenvolvimento de um método para “treinar” o sistema imunológico para reconhecer alvos de maior interesse. Através da vacinação, nós podemos preparar nossas defesas contra determinado patógeno. Durante muitos anos pesquisadores se perguntaram se o sistema imunológico também reconhecia e eliminava células tumorais, e se algo semelhante ao processo de vacinação poderia ser feito contra o câncer. Perguntas que começaram a ser respondidas ao longo das últimas décadas, levando ao desenvolvimento das imunoterapias.

É preciso esclarecer que existem diversos tipos de imunoterapia. Estudos preliminares mostraram resultados surpreendentes, com total eliminação dos tumores, incluindo metástases, e permitindo inclusive a geração de uma memória contra o ressurgimento do tumor (como no efeito das vacinas). Estas descobertas geraram uma enorme empolgação na comunidade científica, levando a uma explosão de ensaios clínicos e a aprovação de medicamentos que já estão disponíveis comercialmente em alguns países (mais de 30 medicamentos aprovados nos EUA).

Embora os resultados sejam “milagrosos” para alguns pacientes, a verdade é que por enquanto apenas cerca de 30% dos pacientes pode se beneficiar da imunoterapia contra o câncer. Na verdade, falar “no câncer” como sendo uma só doença também é algo que dificulta a nossa compreensão dos desafios do tratamento: cada tipo de câncer é uma doença diferente, e a eficácia da imunoterapia foi demonstrada apenas para uma pequena parcela dos tumores conhecidos. Além da diversidade dos tumores, precisamos considerar a diversidade dos pacientes. Cada indivíduo tem um sistema imunológico distinto, respondendo de maneira diferenciada ao tratamento. Isso torna quase impossível predizer o resultado de um determinado tratamento imunoterápico.

No centro de várias das imunoterapias em desenvolvimento estão os linfócitos T, um tipo de células brancas do sangue que tem a capacidade de identificar células infectadas ou doentes. A abordagem desenvolvida pelos ganhadores do prêmio Nobel levou ao primeiro imunoterápico aprovado nos EUA para tratamento de melanoma. Esta terapia envolve retirar os “freios” dos linfócitos T. Com carta branca para atacar a qualquer suspeita, os linfócitos T se tornam muito mais eficientes em eliminar células tumorais. O benefício em um tumor agressivo como o melanoma é mais evidente, visto que existe uma verdadeira corrida pela sobrevivência do paciente. Mas as consequências negativas podem superar os benefícios em muitos casos. O controle do sistema imunológico existe justamente para evitar reações exageradas ou inespecíficas, que podem ser até letais aos pacientes.

Outras abordagens mais específicas já foram aprovadas para uso nos EUA, como as chamadas células CAR-T. Em síntese, são linfócitos T que passaram por um processo de engenharia molecular para se tornar especializados em reconhecer apenas os alvos tumorais. Em função da diversidade dos tumores e da variabilidade genética dos pacientes, este procedimento é bem mais caro e precisa ser customizado para o paciente. Esta é outra limitação das imunoterapias. O custo ainda é exorbitante e impede que esta seja a primeira intervenção utilizada (até 582 mil reais por ano para uma das medicações aprovadas no Brasil). Alguns resultados promissores foram relatados em tratamentos combinando imunoterapia e quimioterapia. No entanto, a quimioterapia é inespecífica e também danifica as células do sistema imunológico, limitando o potencial benefício da imunoterapia.

Apesar dos desafios, nós estamos fazendo progresso em busca de vacinas contra os diferentes tipos de câncer. Não no sentido original (profilaxia), mas no sentido de tratamento e prevenção contra o retorno do tumor. Nós estamos vivendo um período de rápida evolução das tecnologias utilizadas em biologia molecular e de aumento exponencial no poder de processamento de ferramentas computacionais. Hoje é possível recolher uma amostra de tumor e desenvolver um tratamento personalizado para este paciente. Ainda vai levar alguns anos para que estas novas tecnologias sejam aprimoradas e para que o custo seja reduzido a ponto de viabilizar sua utilização em larga escala, mas sem dúvida estamos caminhando a passos largos nesta direção. Dados atualizados sobre o progresso nesta área devem ser anunciados em breve no relatório ASCO Clinical Cancer Advances 2019.

Da varíola ao anti-vaxx: Por que precisamos de vacinas?

Texto publicado em 09/10/2017 no site do Museu do Amanhã, RJ, Brasil.

Em 1904, a cidade do Rio de Janeiro foi palco de uma rebelião inusitada, posteriormente batizada de a Revolta da Vacina. A situação sanitária da capital era tão desastrosa na época, que o Brasil era conhecido internacionalmente como o “túmulo de estrangeiros”. Entre as doenças em circulação na época, destaca-se a varíola. Calcula-se que a varíola matava cerca de 400.000 pessoas por ano na Europa do século XVIII. Numa tentativa de erradicar a doença no Rio de Janeiro, o sanitarista Oswaldo Cruz conseguiu que o Congresso aprovasse a “Lei da Vacina Obrigatória”, que autorizava a invasão de domicílios e vacinação forçada.

Naturalmente a maioria da população não tinha nenhum conhecimento sobre vacinas e temia os possíveis efeitos do tratamento desconhecido. Houveram protestos e, por razões políticas, a rebelião saiu do controle. O governo foi obrigado a amenizar suas práticas, mas retomou a vacinação e eventualmente a varíola foi eliminada da capital. Ao longo do século XX, a varíola ainda mataria 300 milhões de pessoas no mundo; o triplo das mortes por todos os conflitos do período, incluindo as duas guerras mundiais. O Brasil acabou sendo um dos últimos países onde a doença foi erradicada, na década de 1970, encerrando uma iniciativa global iniciada pela Organização Mundial da Saúde em 1967.

A história da varíola é marcante. Tanto pelo impacto devastador da doença ao longo dos séculos, como pelo inequívoco triunfo da ciência sobre a doença. Evidentemente existem aspectos biológicos deste vírus que facilitaram sua eliminação. Mas a meta só foi alcançada graças a uma campanha global de vacinação. A introdução das vacinas, assim como mais tarde dos antibióticos, revolucionou a medicina e aumentou drasticamente nossa expectativa de vida. Não há dúvidas sobre o impacto positivo das vacinas e das campanhas de vacinação.

Vivemos hoje na época mais segura da história do ponto de vista de doenças infecciosas. Basta comparar o Rio de Janeiro atual com a descrição de 1904. O problema é que, para algumas camadas da população, o medo das doenças infecciosas acabou ficando no passado, parecendo proporcionalmente pequeno quando comparado ao medo de outros temas mais modernos.

Nós também vivemos um desequilíbrio entre o acesso fácil à informação e a falta de uma base educacional sólida, que nos permitiria filtrar criticamente o excesso de informação e tomar decisões fundamentadas cientificamente. Isso não significa, de maneira alguma, ser um especialista: é ter a capacidade de identificar fontes confiáveis de informação, de diferenciar fatos de teorias conspiratórias, de aprender com a história. E aqui cabe salientar a responsabilidade dos cientistas profissionais em comunicar bem a ciência, com uso de linguagem clara e acessível.

Esse desequilíbrio nos traz ao fenômeno que alguns veículos brasileiros estão chamando de a “nova revolta da vacina”. Ao contrário da original, em que a suspeita com as vacinas partia principalmente da população mais pobre e com menos acesso à informação, o medo das vacinas agora atinge principalmente as classes mais altas. Estas pessoas acreditam que basta se ter uma alimentação saudável (e usar produtos naturais), para se estar protegido contra doenças. Além disso, a ideia de que as vacinas podem conter “químicos” danosos à saúde acaba complementando perfeitamente uma visão de mundo de que devemos priorizar produtos naturais e tratamentos alternativos.

Infelizmente, estas pessoas estão predispostas a apoiar qualquer teoria que valide esta visão de mundo – o que acaba sendo uma receita para o desastre. Não basta ser saudável para se proteger de doenças infecciosas. A varíola é causada por um vírus. A vacina estimula o sistema imunológico a produzir defesas contra este vírus, agindo de forma preventiva. Quando o vírus entra no organismo vacinado, ele é imediatamente eliminado pela resposta imunológica.

O movimento anti-vacinação (ou anti-vaxx) ganhou notoriedade nos Estados Unidos, apoiado em dados sem credibilidade científica e teorias conspiratórias que se espalharam por redes sociais. A consequência foi um grande surto de sarampo em 2014 (doença que havia sido eliminada nos EUA em 2000). Agora a mesma coisa ocorre na Europa, com uma epidemia de sarampo que já infectou 7,5 mil pessoas. Logo será a vez do Brasil, onde a adesão a campanhas de vacinação também vem caindo em vários grupos. Mais do que um risco às crianças não vacinadas, este é um risco para toda a população. O controle da doença depende da cobertura da vacinação. Mais do que isso, cada pessoa infectada é uma roleta-russa para a comunidade. Durante a infecção, milhões de novas partículas virais são criadas, com diversas mutações. Estas mutações aleatórias podem deixar o vírus subitamente mais agressivo – ou até mesmo resistente à vacina.

O Brasil tem um excelente programa público de vacinação e as vacinas recomendadas pelo Ministério da Saúde são seguras e essenciais. As vacinas permitem a proteção preventivamente, mas não ajudam depois da infecção. Negar vacinação a seus filhos é um ato irresponsável e perigoso que afeta a todos. Felizmente, podemos aprender com a história e com a ciência contemporânea. Apenas com educação e vacinação será possível controlar esta “nova revolta da vacina” e garantir a nossa contínua proteção contra as doenças infecciosas.

As novas vozes da divulgação científica

Texto publicado em 18 de março de 2019 no Blog da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBlogI).

Durante minha graduação na UFRGS eu andei muito de ônibus. Além de ter aulas em múltiplos campi pela cidade, a maior parte das atividades na minha graduação e da minha pós-graduação foram realizadas no Campus do Vale, que fica a mais de 40 minutos do centro de Porto Alegre. As vezes eu dormia, as vezes eu lia, mas logo descobri que a coisa mais prática era resgatar uma tecnologia do passado: o rádio. Adepto da televisão, eu nunca tinha sido ouvinte de rádio. Mas o fato de poder ficar escutando notícias enquanto fazia outras atividades me ajudou a aproveitar um tempo significativo do meu dia que estava sendo desperdiçado. No ônibus, na academia, realizando tarefas domésticas, cada vez eu descobria novas atividades que podiam ser combinadas com o rádio.

Embora eu ainda goste de escutar rádio em alguns momentos do dia, em grande parte eu substitui o rádio por outro veículo que me permite controlar a pauta: o podcast! Os principais smartphones tem aplicativos que permitem assinar canais específicos e receber conteúdo de qualquer tópico de interesse, incluindo notícias, opinião, cultura pop, e até ciência. No meu caso, a introdução a este universo se deu pelo nerdcast, o podcast do Jovem Nerd. O nerdcast foi um dos primeiros canais a se popularizar no Brasil, combinando cultura pop com conteúdo científico. Mas aos poucos vários outros canais mais específicos de divulgação científica foram surgindo, em muitos casos preparados e apresentados voluntariamente por pesquisadores e acadêmicos.

Este tema foi abordado em uma reportagem recente na revista Pesquisa FAPESP (Microfones abertos para a ciência). A reportagem destaca o Alô, Ciência?, um podcast produzido e apresentado por quatro Biólogos formados pela USP. Quatro pesquisadores e um podcast também descreve um outro canal bem mais antigo, o Fronteiras da Ciência (nove temporadas e mais de 350 programas!!). Neste caso, produzido e apresentado por quatro físicos da UFRGS. A reportagem destaca ainda alguns campeões de audiência, incluindo o SciCast, produzido por 90 voluntários (média de 90 mil downloads por episódio!!), e o Naruhodo!, apresentado por um estatístico e psicólogo, e um publicitário.

A reportagem da Pesquisa FAPESP também traz algumas estatísticas sobre o público que escuta podcasts no Brasil. Segundo dados de um levantamento realizado com 22 mil ouvintes pela Associação Brasileira de Podcasters (PodPesquisa 2018), 84% do público de podcasts no Brasil é masculino. Mas pelo menos na parte de produção de conteúdo o quadro está começando a mudar. Um exemplo é o 37 Graus, produzido e apresentado pela bióloga Sarah Azoubel e a jornalista Beatriz Guimarães. A proposta do 37 graus é um pouco diferente. Cada episódio conta uma história, a qual aborda temas científicos. Os episódios são bem elaborados e demandam um trabalho ainda maior do que outros podcasts de divulgação. Mas a dupla já confirmou pelo menos duas novas temporadas, viabilizadas por um financiamento do Instituto Serrapilheira para iniciativas de divulgação científica.

Outro podcast com uma equipe bem diversa (18 pesquisadores e estudantes, no Brasil e no exterior), e um dos meus favoritos na atualidade, é o Dragões de Garagem. Eu recomendo muito um episódio sobre Evolução, com a Dra. Gabriela Sobral, e o episódio mais recente sobre Mulheres na Ciência, com a participação da Dra. Márcia Barbosa. Professora do Instituto de Física da UFRGS e Diretora da Academia Brasileira de Ciências, Márcia Barbosa explica neste episódio que todos os pesquisadores “têm que ser capazes de explicar o que fazem, para uma pessoa com qualquer formação, em um nível que ela possa entender”.

Para mim, este é um ponto chave para o momento em que vivemos, e para as aspirações que temos como civilização. Eu frequentemente cito as palavras “proféticas” de Carl Sagan, em sua última entrevista, dizendo que “nós criamos uma sociedade baseada em ciência e tecnologia, na qual ninguém entende nada sobre ciência e tecnologia”. E o grande problema é que assim nós criamos um abismo entre os acadêmicos e todo o restante da população, frequentemente tomando decisões (enquanto sociedade) que ignoram tudo que descobrimos em décadas de pesquisas científicas. Assim, todos os esforços no sentido de fazer divulgação científica para leigos e de reduzir este distanciamento entre a academia e a sociedade em geral, são tão importantes quanto os esforços “formais” de ensino, pesquisa e publicação científica. Fazer divulgação científica para leigos deveria ser visto como parte das atribuições de qualquer pesquisador, e o tempo dedicado para este tipo de trabalho deveria ser propriamente reconhecido e valorizado. Este universo de podcasts voltados a divulgação científica representa um ótimo instrumento neste sentido e os pesquisadores desenvolvendo este trabalho estão começando a receber algum reconhecimento. Mas ainda há muito trabalho pela frente. A PodPesquisa 2018, citada na reportagem da Pesquisa FAPESP, também revela que aproximadamente 60% dos ouvintes de podcast no Brasil estão fazendo ou concluíram um curso superior, enquanto outros 20% têm pós-graduação. Ou seja, estes ótimos esforços de divulgação científica ainda estão em grande parte restritos à própria academia.

Neste sentido os canais de divulgação científica no YouTube tem conseguido alcançar um público bem mais abrangente. Canais estabelecidos como o Nerdologia e o Canal do Pirula tem episódios que alcançam quase um milhão de visualizações. Este público está atraindo inclusive alguns veteranos da divulgação científica para leigos, como o físico Marcelo Gleiser, que apresentou a série Poeira das Estrelas (uma das poucas séries de divulgação científica produzida pela televisão nacional). Gleiser recentemente criou seu próprio canal no YouTube, no qual irá apresentar o curso “O Caminho da Boa Vida”. Em artigo da Socientífica, ele explica que irá explorar “como nossa conexão com o planeta e universo, inspirado pela ciência de ponta, pode nos ensinar a viver melhor, garantindo o futuro da humanidade”. Mas o youtube, assim como a podosfera, também está criando espaço para muitas novas vozes na divulgação científica, uma diversidade que motivou a criação do selo de qualidade Science Vlogs Brasil. E novas vozes surgem a cada dia, como o Canal das Ciências de Vinicius Schvartz (9 anos).

Mas certamente não devemos nos restringir aos podcasts e vlogs. Devemos utilizar todas as mídias disponíveis, do Twitter `a tirinha do jornal. Obviamente não estou defendendo que todas as nossas atividades devam ter um cunho científico, mas que os temas científicos sejam popularizados até se tornarem tópicos corriqueiros, pois são um componente integral da nossa cultura e da nossa sociedade.

Sobre vacinas e foguetes nos tempos da Terra plana

Texto publicado em 22 de março de 2018 no Blog da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBlogI).

Se você pensa que na Idade Média as pessoas acreditavam que a Terra era plana, se engana. Na verdade isso é um mito, em grande parte disseminado por um livro de ficção histórica sobre a vida de Cristóvão Colombo (que também inspirou o filme “1942: A conquista do paraíso”). Apesar de uma minoria que realmente acreditava na Terra plana, o conceito da Terra esférica já era consenso entre os intelectuais. Mais impressionante, no entanto, é o fato de que o primeiro a fazer um cálculo bastante preciso da circunferência da Terra foi o filósofo Eratóstenes no século III a.C, conforme lindamente explicado por Carl Sagan (versão completa). Mais de 2200 anos mais tarde, nós não apenas acumulamos uma infinidade de dados altamente precisos sobre o formato da Terra, como nós nos beneficiamos diariamente de tecnologias e serviços que são diretamente ligados ao formato do planeta (como internet e comunicação por satélite, GPS, rotas de vôos comerciais, rotas marítimas, etc). Muito diferente do século III a.C ou da Idade Média, hoje uma grande parcela da população tem fácil acesso a informação, podendo acessar uma infinidade de sites/vídeos educativos e aprender por conta própria. O futuro maravilhoso previsto por Isaac Asimov já chegou!! Ironicamente, o efeito colateral deste fácil acesso a informação parece ser uma maior disseminação de teorias conspiratórias e informações falsas, conforme ilustrado na imagem ao lado (publicada por Hype Science). Infelizmente “o tempo da Terra plana” é agora. A internet permite que pessoas que compartilham esta crença se encontrem, se organizem, e promovam a disseminação deste e outros absurdos. Em Novembro de 2017, ocorreu nos EUA a primeira Conferência Internacional sobre a Terra Plana, com centenas de conferencistas (veja vídeo da BBC). Evidentemente, esta crença também se propaga no Brasil.

No que se refere a crença na Terra Plana, o remédio para desinformação pode vir como uma consequência do avanço tecnológico. Estamos vivendo uma nova corrida espacial, envolvendo diversas agências governamentais e empresas privadas. Recentemente, a empresa SpaceX realizou com sucesso o teste de seu novo foguete (Falcon Heavy) e como parte do teste colocou em órbita um carro da Tesla. Milhares de pessoas acompanharam o lançamento pela internet e assistiram ao fantástico retorno dos foguetes auxiliares (boosters). Outros milhares assistiram a live do “Starman” em órbita (imagem abaixo). Obviamente uma parcela dos internautas reagiu ao evento dizendo que era tudo falso. Como qualquer um tinha acesso às imagens reais do Starman e da área de carga do Falcon Heavy, rapidamente surgiram na web várias imagens forjadas, tentando convencer as pessoas de que este evento (real) havia sido forjado. Pause por um momento para pensar no significado desta frase. Por exemplo, é possível achar imagens falsas mostrando o Tesla em um fundo verde, ou o Tesla em um estúdio. Mas independentemente da ação e do alcance destes agentes das teorias conspiratórias, o alcance de um evento histórico como este lançamento da SpaceX é muito maior. Vai ser muito mais difícil defender a Terra plana quando a exploração espacial se tornar rotina e quando passeios em órbita se tornarem acessíveis para uma parcela maior da população.

Mas voltemos ao problema das vacinas. Se algo tão evidente e relativamente acessível como o formato da Terra ainda é motivo de debate e confusão, o que esperar de questões ainda menos intuitivas, como o funcionamento das vacinas? Em 2017 eu escrevi um texto de opinião para o Museu do Amanhã, abordando a importância das vacinas e os riscos do movimento anti-vacinas (Da varíola ao anti-vaxx). Um dos pontos abordados neste texto foi justamente este paradoxo entre o acesso à informação e o aumento da “desinformação”. Este ponto foi posteriormente abordado no TEDxUSP pelo Biólogo Átila Iamarino (apresentador do Nerdologia). O Átila discutiu como o nosso sistema educacional está defasado frente a este dilúvio de informações. Muito mais importante do que ensinar os alunos a acumular fatos e conhecimentos estáticos, seria ensiná-los a buscar e filtrar o conhecimento desejado. Ser cético com o conteúdo encontrado, avaliar a credibilidade das fontes, considerar questões como conflito de interesse, viés político, etc.

Isso não significa que todos precisam ser especialistas ou cientistas. Apenas que todos deveriam ter as ferramentas básicas de pensamento crítico e de método científico. Os cálculos de Eratóstenes não eram tão complicados, mas nem todo mundo precisa saber reproduzi-los hoje. No entanto, todo mundo deveria ter uma noção de grandezas (e de escala) e facilmente concluir que uma régua de 30 cm alinhada contra o horizonte não prova que a Terra é plana. Este pensamento crítico e científico (básico) também nos protegeria de acreditar no pseudo Dr. Fulano, que está revelando pelo whatsapp a cura milagrosa do câncer. Usualmente baseado em produtos 100% naturais, que só não foram revelados pela grande mídia em função do complô da indústria farmacêutica para continuar vendendo medicamentos (haja vista a polêmica da “fosfo”, que de fato não funcionava).

Foi justamente neste ambiente fértil da internet e das redes sociais que a teoria anti-vacina cresceu e se espalhou como uma epidemia mundial. Apoiada em ideias “intuitivas”, mas erradas, como a de que o bebê é muito pequeno para suportar todas as vacinas obrigatórias, de que o número de vacinas é apenas consequência de uma pressão mercantil, de que as vacinas enfraquecem o sistema imunológico “natural”, de que tratamentos homeopáticos são mais seguros e eficientes, etc. A consequência vem sendo acumulada nos surtos de doenças que já haviam sido controladas, como o Sarampo. Os EUA tiveram um grande surto de Sarampo em 2014 (CDC). Mais recentemente uma epidemia de Sarampo na Europa contaminou mais de 7,5 mil pessoas (ECDC). O Brasil também pode entrar para esta lista, visto que a adesão a campanhas de vacinação também está caindo em alguns grupos (O GLOBO, Folha).

Outro ponto mencionado no texto do Museu do Amanhã foi que cada pessoa infectada é uma roleta-russa para a comunidade, pois mutações aleatórias em cada ciclo de replicação do vírus podem subitamente torná-lo mais resistente ou mais “agressivo”. Uma publicação recente na revista Science fornece um exemplo real deste risco. Os autores descrevem que uma simples mutação (S139N) em uma proteína do vírus Zika foi responsável por um aumento substancial na capacidade do vírus de infectar células progenitoras neurais, acarretando o aumento de incidência de microcefalia no recente surto de Zika nas Américas. Lembrando que no período inicial do surto também não faltaram teorias conspiratórias sobre a causa da microcefalia, inclusive colocando a culpa nas vacinas.

Em resumo, ainda precisamos evoluir muito em termos de educação básica e divulgação científica para leigos. E isso não é um problema exclusivo do Brasil. Além disso, sempre existirão pessoas defendendo todo tipo de absurdo na internet, por ignorância, ganância, ou motivos ocultos. Pior do que isso, existem grupos organizados que estão usando esta nossa vulnerabilidade para manipular o público através das mídias sociais (Sciencemag, O GLOBO); o que também soa como uma grande teoria conspiratória, mas que parece ser a nova realidade. Infelizmente, não existe solução simples ou rápida para estes problemas. Mas o mais importante neste momento é não desistir do diálogo civilizado, sempre que for possível. Ouvindo as opiniões mais absurdas, mas respondendo respeitosamente com base em fatos e informação de fonte confiável. Uma frase que tem sido repetida por diversas pessoas nos EUA salienta que “as pessoas têm direito a suas próprias opiniões, mas não tem direito aos seus próprios fatos”. Nós precisamos encontrar uma base sólida de fatos para construir um novo diálogo, capaz de transpassar as nossas bolhas sociais. E precisamos repetir quantas vezes forem necessárias que a Terra não é plana e que as vacinas não causam autismo (PLOS Blogs).